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sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Uma cordialidade para os vivos

Lembro-me do sol queimando minha nuca e do aparente alívio que senti quando alcancei a sombra. Um azul intenso - que resultava do reflexo do teto - atingiu-me e uma tristeza enorme me tomou. Agora, eu tinha 12 anos e ninguém me pouparia de viver aquele momento.
Lágrimas inundaram meus olhos e toda minha visão tornou-se um borrão. Conseguia distinguir apenas algumas coisas, como as pessoas desconhecidas que choravam uma dor que não as pertencia. Que, naquele momento, era a dor de somente três figuras ao redor dela.
Uma mulher, chorando muito e afagando-lhe os cabelos. Um homem, parecido com a mulher, sério, porém triste. E outro homem que não aparentava esboçar qualquer sentimento.
As músicas começaram a sair dos lábios anônimos. Pois, já não existiam mais rostos - somente uma infinidade de pessoas que a rodeavam. E era chegada a hora.
Sua expressão demonstrava um descanso sereno e as músicas me arrepiavam. Por mais que existissem diversos vivos ali, tudo que cercava-me era a morte. Seu corpo não tinha mais vida e ela não estava mais ali. Tudo isso era uma cordialidade para os vivos.
Tamparam-lhe e a moveram. Começava a caminhada para sua última, e definitiva, morada. A dor me assolou mais uma vez e meu coração tropeçou. Nas canções que pairavam no ar e não eram as que ela proferia. Nas mãos da mulher que, agora, afagavam-me os braços e não mais seus cabelos. No jovem, que no coração sentia a dor, e a acompanhava de perto. Na menina que chorava descontroladamente e teve que ir embora. E na multidão que nos seguia.
Ninguém ali a conhecia. E não fazia diferença, pois ela não reconhecia ninguém. Finalmente, estava juntando-se a indivíduos conhecidos.
Uma cerimônia para os vivos, pensei. Para despedir-se de quem já havia partido.
Mais lágrimas vieram e tornava-se cada vez mais difícil enxergar algo. Até, finalmente, chegarmos. Até abrirem-lhe a porta, tirar quem antes estivera lá, e a quem ela mal podia esperar para juntar-se.
Colocaram-la em sua nova casa e fecharam-lhe. Como se fosse uma cortesia. Como se fosse uma despedida.
E era, lembrei.
A dor dividiu espaço com o alívio. Era melhor assim, eles me diziam, ela está onde deveria estar.
Queria sussurrar um "obrigada" por tudo que tinha me feito sem ao menos saber. E um "desculpa" por todas as vezes que fui egoísta e não me equivalei a ela.
Ela poderia não se lembrar de mim em vida, mas realmente acredito que sua memória tenha voltada e um resquício de recordação passe em sua mente.
Pois, passa na minha, diariamente. Porque me lembro dela e sempre irei me lembrar.